Chef Max Jaques escreve sobre o Dia do Sertanejo e a comida da região

A culinária de um povo é uma característica fundamental e viva. Uma centena de autores tem se debruçado sobre o tema ao longo dos séculos, e especialmente nas últimas décadas, quando o auge dos alimentos ultraprocessados nos assusta e nos convida à ação. Tentamos responder como podemos garantir que nosso povo se alimente de forma saudável, dentro das diferentes realidades e dos diferentes biomas em cada um dos pedaços do Brasil. Para homenagear o Dia do Sertanejo, resolvi dizer um pouco sobre a comida do Sertão.  

O que entendemos hoje como cozinha brasileira é resultado de um processo migratório intensificado a partir do século XVI. A junção dos saberes do índio e do negro diante da colonização européia marca o grosso da miscigenação dolorosa que cria a nossa cozinha. Desse processo conflituoso de conquista de território, emerge nossa cozinha nacional, que segue viva e se modificando frente aos novos movimentos migratórios.

Para falar da comida do sertão, lembro que se hoje temos meios que nos dão velocidade no transporte de alimentos, se temos tecnologias para refrigeração e conservação de comestíveis, não era essa a realidade há algumas dezenas de anos. Ainda não é em alguns cantos do país. Precisamos lembrar que o Brasil foi colonizado pelos portugueses a partir do litoral e foram os bandeirantes, no século XVI, que iniciaram a empreitada de “descobrir” o Brasil interior, os rincões, o Sertão. 

Destaco o verbo descobrir porque, de alguma maneira, os Bandeirantes descobriram e também inventaram o sertão brasileiro. Ao realizar suas empreitadas Brasil adentro, moldaram o que hoje é esse território cultural. Levaram porcos e galinhas, além de estabelecerem espaços de plantio do milho, o que ajudou a moldar as características da culinária do sertão. 

Câmara Cascudo, no livro História da Alimentação no Brasil, aponta que se no litoral temos maior incidência da mandioca e dos peixes, no Sertão temos o milho e o porco. A explicação é bastante óbvia: enquanto as roças de mandioca levavam em torno de um ano para a colheita, as de milho ofereciam alimento em menos da metade do tempo. O porco é versátil, comedor de frutas e qualquer outra coisa. Dele se desfrutava os cortes e também se extraia a banha, que engordava preparos e garantia a conservação da carne. Tecnologias ancestrais que também se juntavam à salga para fazer a carne de sol ou de vento, transportadas nos farnéis. Fora isso, a caça e as frutas também ofereciam prato cheio.

Mesmo após a passagem dos Bandeirantes e com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, no século XIX, apesar da chegada de ingredientes novos como a farinha fina de trigo, esses itens ficavam restritos à costa brasileira. Era impossível levar o trigo ao interior do Brasil, levava muito tempo, estragava. Dessa impossibilidade é que vemos a preservação de hábitos nitidamente indígenas, como a fartura de frutas e raízes assadas ou cozidas nos cafés da manhã. Na ausência da farinha de trigo, surgem os bolos e pães de milho e mandioca. A partir do saber indígena, o fino trato dado ao polvilho permite o surgimento de biscoitos, brevidades, pães de milho e de queijo, mingaus. A rapadura adoça o lamento sertanejo e com o passar dos anos o chibé e a cachaça substituem os caiuins e caxiris. 

Do Sertão surgem as paçocas de carne de sol, variações do cuscuz, as receitas com feijão, os peixes de água doce, o baião de dois, os princípios das farofas, os leites e queijos de cabra, as coalhadas, o sarapatel, as buchadas e os preparos com carne de bode, as raízes no café da manhã com manteiga da terra, pamonhas, canjicas, alfenins, tarecos, fatias e pirões de parida, as umbuzadas e os sucos de umbu, dentre milhares de outros.

Cito essas receitas para contrapor o que geralmente escutamos sobre a cozinha do sertão: uma suposta cozinha da carestia, de onde se supõe a falta, de onde surge uma sensação de pouco. Um equívoco, sem dúvidas.

A cozinha sertaneja se fez ao longo dos anos tão rica e tão criadora do Brasil quando a comida do litoral. Parafraseando Euclides da Cunha em Os Sertões, o sertanejo – assim como sua cozinha – é antes de tudo um forte. 

Viva aos saberes e ao povo do Sertão. 

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