Evento reuniu mais de 100 pessoas em São Paulo para tratar da cultura quilombola e suas nuances

Bel Moherdaui, Letícia Rocha e Rafaela Polo – Fotos: Ricardo Toscani

Aconteceu na última terça-feira, 14 de maio, o I Fórum Brasil a Gosto: Saber para Resistir, Resistir para Preservar. Em um auditório do prédio da Gastronomia da FMU, sede do laboratório do Instituto Brasil a Gosto, mais de 100 pessoas se reuniram para participar de uma série de oito mesas que discutiram diversas nuances da questão quilombola no Brasil. O Fórum é um dos desdobramentos da primeira expedição do Instituto Brasil a Gosto a um quilombo, que aconteceu em fevereiro deste ano, quando levamos um grupo de chefs, cozinheiros e jornalistas para visitar os quilombos do Vale do Ribeira, conforme explicou Fabio Roldan, diretor do Instituto, na sua mensagem de boas vindas: “Naquela imersão, entendemos que nós, enquanto Instituto Brasil a Gosto, precisaríamos fazer algo para ajudar na salvaguarda da cultura quilombola.” E um dos caminhos encontrados foi justamente esse fórum, idealizado pelo chef pesquisador Max Jaques, que também participou da expedição e se uniu à equipe do Instituto nos últimos meses. “De alguma maneira, o antagonismo do privilégio é a negligência, e precisamos parar de negligenciar debates fundamentais para a compreensão da nossa cozinha, da nossa cultura. É preciso saber para resistir, e é preciso resistir para preservar”, diz Max.

O público encheu a sala e participou ativamente das discussões. Integrante de uma das mesas, a chef Tanea Romão elogiou a iniciativa e apontou: ”É muito bonito e forte ver todas essas mulheres negras com microfone hoje neste palco! Quase nunca temos essa voz, esse poder”. Já a bióloga Raquel Pasinato, que há mais de uma década trabalha com os quilombos do Vale do Ribeira pelo Instituto Socioambiental, disse: “A gente negligencia a cultura quilombola historicamente. Depende de todos nós resistir, insistir, brigar pelas políticas públicas e por ações efetivas para ressignificar a nossa cultura. É um longo percurso”. Vamos todos juntos #pelacozinhaquilombola?

ABERTURA


A abertura do evento foi feita pela chef
Bel Coelho, ao lado de Patty Durães e Wlisses Reis, respectivamente diretora de operações e subchef do Clandestino Restaurante. Bel contou que a primeira vez que havia tido contato com a cultura quilombola também foi no Vale do Ribeira, quando o empresário Ederon Marques, da Araribá Turismo, chamou sua atenção para a importância de valorizar e preservar a cultura quilombola. “Depois desse dia, nunca mais me desliguei dessa problemática, que passa pelo desinteresse e pode acarretar na extinção cultural de um povo. Se isso acontecer, eles perdem, a gente perde, o país perde. Embora faça parte da parcela branca e de elite da população, sei das minhas origens e sei que temos uma dívida histórica muito grande com todos eles. A gente não pode, de novo, roubar ou negligenciar a cultura e a tradição dos negros”, disse Bel.

Patty e Wlisses, que fizerem parte da expedição do Instituto Brasil a Gosto em fevereiro, ressaltaram como a viagem mudou seu ponto de vista. “Estar em um quilombo foi um ‘abrir de olhos, abrir o coração’. Foi uma renovação muito importante para mim. Me deparar com uma cultura de união, de economia circular, de resistência, me revelou uma riqueza imensurável. Voltei querendo estudar e me envolver cada vez mais com o tema, saí contando histórias aos meus amigos, vizinhos, colegas de profissão, dando aula na escola da minha filha. E sigo fazendo essa minha micropolítica quando e onde posso”, contou Patty. “Sou negro, baiano e não conhecia um quilombo. Em 20 anos de profissão, nunca nem tinha ouvido falar de culinária quilombola. O que mais me chamou a atenção foi o quanto eles se ajudam e o quanto cuidam da terra. Saí de lá uma pessoa culturalmente muito mais rica”, relatou Wlisses.

Daqui de onde vemos: o quilombo como mecanismo de resistência


A segunda mesa foi com a socióloga e pesquisadora Wallesandra Rodrigues, que falou um pouco da perspectiva histórica dos quilombos e da sua relação pessoal com eles. “Como cientista social, olho para a sociedade e vejo que os quilombolas sofreram um ‘apagamento’ de sua cultura. Sou mulher, negra, de Cuiabá (MT), uma de região de muitos quilombos. Vivi isso na infância, mas, em algum momento, a conexão (minha e das pessoas) se perdeu. É comum ver as pessoas comendo doce de mamão ralado, arroz Maria Isabel, paçoca de pilão, sem associar à culinária e à cultura quilombola. Quilombo é a gente. E, por isso, precisamos nos ‘aquilombar’, ou seja, criar movimentos culturais, eventos, experiências para que todos – negros e brancos – se envolvam em todos os lugares, porque quilombo não é só um território: é história, é cultura, é a gente, é algo que não tem limite”, propôs.

Toda Cozinheira é uma Benzedeira


A mesa mais interativa foi a terceira. Patty Durães mediou a conversa com a chef Tanea Romão, do restaurante Kitanda Brasil, e a cozinheira Elvira da Silva, liderança do Quilombo de Ivaporunduva, que veio especialmente do Vale do Ribeira para o Fórum. “Benzer é bendizer, é querer o bem, transmitir o afeto. E esse é o mesmo propósito da cozinha”, iniciou Patty, enquanto eram espalhadas no palco uma série de ervas que servem para benzer e para comer, como arruda, carqueja, palma e santa maria. “O papel do negro é fortíssimo. É deles a sabedoria de ter entrado na mata e ter descoberto o que é bom para curar as feridas, o que é bom para matar a fome. Nossos antepassados deixaram isso para a gente”, disse Elvira. “Aprendi muito com a minha avó, que era benzedeira da comunidade, e lá temos no quilombo mais de 300 tipos de plantas e ervas medicinais”, contou.

Tanea abriu sua fala contando algo bem pessoal: “Há dez anos me descobri negra: tenho pai branco, mãe negra, mas cresci em um bairro de classe média de São Paulo, a Vila Romana, estudei em escola pública, mas de qualidade. Convivi com pouquíssimos negros. Foi um processo de reconhecimento. Ou melhor, de me conhecer de verdade”. Depois contou um pouco dessa relação das ervas com a cura e a cozinha: “Os mateiros têm um conhecimento muito grande e que tem sintonia com a cozinha. Tudo o que a Elvira disse que é usado para benzer, podemos usar na cozinha: a carqueja, que é para quem ‘ganha nenê’, rende uma ótima caipirinha; a arruda, famosa por espantar mau olhado, é usada em salada no Piemonte, na Itália; a lavanda, que relaxa, é ingrediente de bolos, doces e sorvetes no Mediterrâneo; a babosa, boa para queimaduras, é usada em um cozido peruano.” E acrescentou: “Eu aplico a cultura dos quintais na minha cozinha. Há pessoas que choram quando comem arroz e feijão! Mas eu precisei ser chef famosa, premiada, ter cabelo alisado, para poder fazer esse tipo de comida. Primeiro, foi preciso alcançar um patamar, uma autonomia, credibilidade, para só então poder bancar e ter esse poder de fazer o simples, de assumir a minha cozinha, o meu cabelo.”  Elvira fez questão de pontuar: “Ser quilombola é ser resistente. Nossa cultura foi sendo apagada da história.”

Cultivar é o que nos alimenta: a Roça de Coivara


É óbvio, mas não é simples: os moradores dos quilombos precisam plantar seus próprios alimentos. Rosana de Almeida, que veio do Quilombo de Nhuguara, levantou que existem muitas dificuldades na hora de fazer o plantio, principalmente porque existe um controle do governo sobre qual terra eles podem usar para roça. “Chega a hora do plantio e não temos lugar para roçar. Quando aparece, que não é sempre, já é tarde para começarmos e acaba que perdemos a chance de plantar aquele cultivo, naquele momento do ano. Vivemos disso e conhecemos o melhor momento, o melhor lugar para plantar. Dependemos da boa vontade das pessoas, de projetos, ongs e das políticas públicas, que vêm sendo canceladas uma atrás da outra. Meu pai criou a gente com roça, estamos tentando criar nossos filhos assim, mas como será esse futuro próximo? Não sabemos!”, disse destacando sua preocupação. Tudo isso é consequência, segundo Raquel Pasinato, que  há 12 anos, assessora a comunidade quilombola do Vale do Ribeira, da falta de conhecimento sobre a roça de coivara. “Aos poucos, temos conseguido provar que a cultura quilombola é um patrimônio cultural brasileiro e que eles são justamente o inverso do que são taxados. Por meio da colheita de coivara, eles protegem o bioma, ajudam a proteger a Mata Atlântica, geram trabalho, renda, alimento, preservam famílias e seus costumes”, explica a bióloga. A chef Ieda Matos, do restaurante Casa da Ieda, trouxe estatísticas que mostram como é preocupante essa situação. “Na Chapada Diamantina, minha região, são 747 comunidades quilombolas e só três têm terras legalizadas”, contou ela que, cresceu na roça.

Empreendedorismo gastronômico negro na cidade


Vamos começar essa conversa lembrando de uma estatística que surgiu justamente nessa mesa: 54% da população brasileira é negra, e, mesmo assim, eles ainda são os mais pobres, marginalizados e que sofrem com preconceitos. “Há a desvalorização: você é menosprezada e querem ‘barganhar’, diminuir o preço quando vêem que você é negra. Já perdi as contas de quantas vezes já ouvi: ‘quem é a dona?’ Não passa pela cabeça das pessoas que seja eu, uma mulher negra. Você pode ser uma cozinheira ótima, mas não pode ultrapassar a fronteira de ser a chef, a empresária!”, disse Larissa Januário, que é jornalista e cozinheira, toca o site Sem Medida e o projeto Jantar Secreto. Junto com ela, as chefs Aline Chermoula, do Chermoula Gastronomia, e Priscila Novaes, do Kitanda das Minas, destacaram a importância do black money no afronegócio. “Mas fazer o afro negócio não é nada fácil e requer paciência, dedicação, atenção. Porque não é só contratar. Talvez você tenha que dedicar muito mais tempo para treinar aquela pessoa, que pode saber cozinhar divinamente, mas precisa ser orientada sobre regras e práticas da cozinha profissional e da segurança alimentar. Tratar o funcionário como se fosse um filho, o que no final é muito gratificante porque você vai vendo o crescimento, geração de renda, aumento da autoestima, profissionalização. Vão se formando profissionais, cozinheiras, garçonetes, gerentes… Isso muda a vida delas e a nossa também”, disse Aline. “A responsabilidade é nossa enquanto grupo! Cada um deve ir praticando o afro business com seus micro nichos, fazendo com que o mercado gire e o Brasil se (re)conecte com as nossas origens e ancestralidade. E um conselho para todos: dê oportunidade ao negro, contrate o negro, mude a vida das pessoas”, finalizou Aline.

Estudar ou ficar na roça? Desafios para as novas gerações nos quilombos


“Nosso papel como cidadão, empreendedor e consumidor é escolher de quem a gente compra, quem a gente contrata”, disse a nutricionista Priscila Sabará, CEO da FoodPass, que mediou essa conversa entre as quilombolas Elvira e Rosana sobre algo muito preocupante: o abandono dos quilombos pelas novas gerações. “Vendíamos banana para supermercados, creches e prefeituras. Mas contratos públicos estão quase todos sendo cancelados. O jovem quer continuar a sabedoria familiar, mas não tem trabalho! Alguns saem para estudar, mas a vida na cidade é muito difícil: costumes e ritmos diferentes, tem o custo de moradia, da alimentação… Pouquíssimos que saíram voltaram formados e hoje temos um advogado, um agrônomo e são essas duas ou três pessoas que estão nos ajudando a tentar encontrar saídas”, contou Elvira. Rosana, que é de outro quilombo do Vale, demonstra a mesma preocupação. “Sinceramente, não sei o que vamos fazer. As roças estão se esgotando ou as autorizações chegam tarde, os projetos do governo estão sendo cancelados. E nossos filhos vão fazer o quê? Diferente da Elvira, na minha comunidade não tem ninguém que conseguiu estudar e também não temos a pousada que recebe turistas, como eles. Quando conseguimos produzir, não sabemos como vender. Precisamos de ajuda, de um socorro. Esse evento hoje está nos auxiliando a expor esses problemas, por isso que mesmo com vergonha, com medo, eu aceitei o convite e vim”, disse.

Gastronomia Periférica: o Aquilombamento Acabou?


Para Edson Leite, chef e criador do Gastronomia Periférica, a periferia é um tipo de quilombo. O que nos faz pensar: será que realmente acabou? “Na periferia nós produzimos o orgânico, mas ainda não o colocamos na nossa rotina por motivos diversos, do preço à falta de tempo. É mais fácil comprar um macarrão instantâneo e um molho de latinha. A gente vende saúde e consome veneno!”, disse Edson. Em um papo mediado pela chef Mônica Rangel, e com a presença de Adélia Rodrigues, sócia e também idealizadora do Gastronomia Periférica, o trio levantou questões como preconceito e falta de recurso financeiro para quem é periférico manter uma boa qualidade na alimentação. “Ouvi tantas questões aqui que todos nós, cidadãos e profissionais da gastronomia, devemos nos perguntar e começar a botar em prática. Eu me comovo e me envolvo muito com as comunidades autóctones, acabei de voltar de um retiro em uma tribo indígena, que foi transformador. Aprendi muito, mas vejo que índio, querendo ou não, tem suas terras, tem – ou tinha a Funai. E o quilombola? Ele não tem e nunca teve esse tipo de suporte! “, disse Mônica. “Nós precisamos entender que somos o topo da pirâmide e não a base. Na Gastronomia Periférica, formamos muito mais que cozinheiros, formamos seres humanos. Mostramos que ele pode crescer sendo da periferia, sendo negro”, completou Adélia.

ENCERRAMENTO


O último a subir no palco do Fórum Brasil a Gosto foi o chef e agora também embaixador do Instituto, Guga Rocha. Ele tem mais de 10 anos de estudo sobre quilombos e sabe, como poucos, as dificuldades que eles passam. “A gente não valoriza quem nós somos. E sim, se muda um país em uma ou duas gerações, mas passa por educação e a comida é um viés para ajudar nisso. Mas é preciso criar um movimento em prol de ações efetivas. Por que existe, por exemplo, o turista que viaja para ver aves, o que quer ver uma árvore histórica, por que não o que vem para viver a experiência de imersão em um quilombo? A gente valoriza quem não somos! É preciso construir uma nova visão de quilombos, ressignificar, talvez até de um jeito pop, para vender e trazer dinheiro no bolso – sim, precisamos disso!”, disse.

Degustação com receitas de quilombos do Vale do Ribeira interpretadas pelos chefs do Brasil a Gosto

Ao fim do Fórum, 30 participantes, que compraram convites com antecedência, participaram de uma degustação de receitas e preparos típicos dos quilombos. Foram servidos:  

Salada de pupunha com maná

Farofa de taioba

Quibebe de abóboras variadas

Virado de banana

Esse fórum não teria sido possível sem a parceria fundamental da FMU, que sedia a cozinha do Instituto e abriu suas portas para os nossos convidados, assim como de muitos apoiadores como Araribá Turismo & Cultura, Foodpass, Instituto Sociambiental, Espaço Zym, Revista CLAUDIA, Feira Preta, Gastronomia Periférica, Chermoula Gastronomia, Kitanda das Minas, Food Forum, Sem Medida, Mídia Ninja, Gosto com Gosto, Kitanda Brasil, Casa da Ieda e Bel Coelho Gastronomia.